Alvo inocente
Vinte segundos separaram um Boeing 707 brasileiro de um míssil Sidewinder britânico durante a Guerra das Malvinas. A informação faz parte do livro Cem dias, de John Woodward, comandante das forças britânicas durante o coniflito com as tropas argentinas, publicado em capítulos pelo jornal londrino Daily Mail.
No dia 21 de abril de 1982, de acordo com o relato do militar, um objeto não- identificado foi captado pelo sistema de radar do porta-aviões Hermes, que estava a caminho do arquipélago situado no Atlântico Sul e recém-ocupado pelas forças argentinas. Como o objeto voava a longa distância, um avião Sea Harrier recebeu ordens de decolar para interceptá-lo. Ao se aproximar, o piloto informou tratar-se de um Boeing 707 sem armas de combate e disse que o avião estranho havia mudado sua rota ao avistar o caça britânico.
Cometeu, no entanto, um equívoco perigoso: identificou, por engano, insígnias da Força Aérea Argentina no Boeing e confundiu a aeronave brasileira ( da Varig ), a caminho da África do Sul, com um avião de reconhecimento argentino. O erro foi percebido quando o alvo já estava na mira do caça. "Todo o curso da guerra teria mudado caso essa tragédia ocorresse" , admitiu o comandante no livro. Woodward relata o episódio com riqueza de dletalhes. Uma foto tirada pelo piloto deixava supor que o Boeing havia sido convertido num avião de reconhecimento militar. Sua missão, na rápidla avaliação do comandante, seria checar o tamanho e as rotas da frota inimiga. "Era o ladrão", concluiu na ocasião. "Pareceu-me que aquele tipo de coisa poderia continuar. Assim, ordenei a derrubada do aviao, contou.
Na manha do dia 22 de abril, exatamente às 11h34, o avião foi novamente detectado pelos radares do Hermes. Dessa vez, mais prevenido, o comandante enviou uma patrulha de combate para interceptar o 707, mas a missão fracassou e o avião desapareceu. No início da noite, o suposto inimigo voltou a aparecer e chegou a entrar na linha de alcance dos mísseis britânicos. Nesse momento, Woodward chegou a desconfiar do engano monumental, mas em seguida manteve seus planos. "O ladrão tem nos visitado há três dias. É hora de tirá-lo de cena", decretou. Mantida a sentença, um caça Sea Harrier aproximou-se do Boeing. Mas, a 20 segundos de fuzilá-lo, o piloto percebe um novo detalhe. "O avião parece estar numa linha direta de Durban ( na Africa do Sul ) para o Rio de Janeiro", informa pelo rádio.
O comandante gritou imediatamente: " Armas paradas !" Em seguida. ordenou a aproximação de um caça para realizar a identificação visual do ini-migo. O erro, então, é finalmente descoberto. O piloto britânico informa tratar-se de um avião comercial brasileiro, com luzes de navegação e de cabine devidamente acesas e posicionado na rota noroeste Durban-Rio de Janeiro. Essa conclusão acabou por revelar um outro mistério: as duas companhias aéreas que operam entre o Brasil e a Africa do Sul - Varig e South Afriean Airlines (SAA) - só fazem vôos para Joanesburgo. 'Se tivésse-mos abatido aquele Boeing, a Grã-Bretanha certamente teria perdido a soberania sobre as Malvinas ( nome que os Britânicos dão às Malvinas ). Que outra opção restaria ao governo americano senão a de retirar o seu apoio a Londre ?', pergunta ele.
"A força-tarefa britânica seria chamada a regressar, as Malvinas seriam hoje Malvinas e eu teria sido conduzido a uma corte marcial", imagina Woodward. Ele admite que nem mesmo a então primeira-ministra britânica, Margarert Thatcher, foi informada sobre o episódio. A derrubada do avião brasileiro, na avaliação feita pelo comandante em seu livro, provocaria um "furor mundial" semelhante ao ocorrido em 1983 com o equivocado ataque promovido pela aviação soviética a um Boeing 747 sul-coreano. O incidente provocou a morte de 269 pessoas. Na época, o então presidente americano, Ronald Reagan, exigiu desculpas formais de Moscou, mas a URSS alegou que o avião não respondeu às tentativas de comunicação emitidas pelos caças soviéticos e acusou os Estados Unidos de terem usado o avião como cobertura para uma missão de espionagem.
Cinco anos depois, no final da guerra entre Irã e Iraque, um navio de guerra americano estacionado no Golfo Pérsico confundiu um Airbus comercial iraniano com um F14 e o abateu, causando a morte das 290 pessoas a bordo. A guerra das Malvinas, iniciada em 2 de abril de 1982 com o desembarque das forças argentinas na ilha e concluída em junho com a retomada do arquipélago pelos britânicos, não precisou, porém, de acidentes para deixar um trágico saldo: 712 argentinos e 255 britânicos mortos em combate. Durante o conflito, um bombardeiro Vulcan invadiu o espaço aéreo brasileiro e foi interceptado por caças F5E da FAB. A Argentina exigiu do governo brasileiro a devolução do avião após o fim da guerra, mas o pedido foi negado. No dia 11 de junho, três dias antes de Buenos Aires assumir uma errota humilhante, o Vulcan decolou rumo à base britânica de Ascensão, depois da promessa de Londres não usá-lo nos combates.